“Luiz Inácio Lula da Silva nunca escondeu seu gosto por um copo de cerveja, uma dose de whisky ou, melhor ainda, um gole de cachaça, o potente licor brasileiro feito com cana-de-açúcar. Mas alguns de seus conterrâneos começaram a questionar se a predileção do presidente por bebidas fortes está afetando a sua performance no governo”.
Essas eram as linhas iniciais de uma reportagem que, publicada pelo jornal “New York Times” em maio de 2004, há 20 anos, durante o primeiro mandato de Lula no Palácio do Planalto, abriu uma crise entre o gabinete do petista e o tradicional veículo americano. Ao longo do seu texto, baseando-se apenas em suposições de opositores do presidente, o jornalista Larry Rohter, então correspondente do “Times” no Brasil, sugeria que o chefe do Executivo era um alcoólatra e que isso gerava inquietação no país.
A reportagem recebeu muitas críticas. A imprensa achou falhas de apuração no trabalho. O então diretor da Escola de Comunicação da Universidade de São Paulo (USP), José Coelho Sobrinho, definiu a matéria como “totalmente tendenciosa” e disse que aquela era “uma forma muito baixa de fazer jornalismo”. Até mesmo líderes do PSDB, na época o principal partido de oposição a Lula, condenaram o texto. De fato, não existia uma preocupação no país com o consumo de álcool do petista.
“Conheço o presidente Lula há anos e nunca vi nele nada que cheirasse a descontrole nesse campo. O jornalista resvalou na grosseria e não daria para tirar casquinha disso”, disse o então senador Arthur Virgílio (PSDB-AM). “O presidente tem a nossa total solidariedade. A reportagem é injusta e maldosa, e o governo federal está corretíssimo na sua indignação”, acrescentou o então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, rival de Lula em 2004, mas hoje seu aliado e vice-presidente da República.
Entretanto, embalado pelo apoio de diferentes setores, Lula tomou uma decisão que faria boa parte do seu respaldo secar. Em um comunicado de cinco linhas, o Ministério da Justiça informou que o visto de permanência de Rohter no Brasil seria suspenso. Na nota, a pasta alegava que a resolução havia sido tomada “em face de reportagem leviana, mentirosa e ofensiva à honra do presidente da República Federativa do Brasil, com grave prejuízo à imagem do país no exterior”.
De partida para uma viagem oficial à China, Lula chamou a reportagem de “sandice”. “Não peça para o presidente responder a uma sandice daquela”, disse ele a jornalistas que o acompanhariam durante a excursão para o país asiático. “O autor da reportagem não me conhece e eu não o conheço, mas hoje ele deve estar mais preocupado do que eu. Não comento este caso. Quem comenta é o Ministério da Justiça. Este é um caso que não merece resposta, merece uma ação”.
A reportagem de Rohter cita como sua fonte principal o ex-governador do Rio Leonel Brizola. Fundador do PDT, o político gaúcho fora candidato a vice-presidente na chapa de Lula em 1998, quando o petista foi derrotado por Fernando Henrique Cardoso (PSDB) pela segunda vez. Porém, em 2004, Brizola havia se tornado um dos principais críticos do ex-líder sindical, a quem repudiava por negligenciar bandeiras da esquerda. Em 2003, por pressão dele, o PDT tinha rompido oficialmente com o governo Lula.
De acordo com a reportagem do “New York Times”, o político gaúcho disse que, quando era candidato a vice do petista, Lula bebia muito e não dava atenção aos apelos de Brizola para que ingerisse menos álcool. Ainda segundo a matéria, o ex-governador afirmou que “pelo que se diz, ele continua bebendo”.
O texto também citava uma coluna do jornalista Diogo Maynardi (crítico contumaz de Lula) na revista “Veja” e uma carta de leitor na mesma publicação, além de uma gafe de Lula, que teria se referido ao presidente da montadora General Motors como presidente da Mercedes-Benz. Mas a reportagem não contava com depoimento de alguém próximo a Lula ou de qualquer pessoa que pudesse confirmar se, naquele período, o ex-líder sindical estava exagerando no álcool. Ou seja, com o título de “Bebedeira de líder brasileiro se torna preocupação nacional”, a matéria não se sustentava em fatos.
Mas, ao tomar a decisão de suspender o visto do autor da reportagem, Lula passou a receber críticas não apenas de seus opositores na política em Brasília, mas também da imprensa nacional e mundial. Segundo a revista “The Economist”, por exemplo, a medida levou grandes veículos de informação de diferentes países a prestar atenção numa história “embaraçosa” que, se não fosse pela expulsão do jornalista do “The New York Times”, sequer teria sido levada em conta.
O então senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) foi bem mais contundente: “É um absurdo, uma decisão imatura de ditador de republiqueta de terceira categoria, de quem não entende o papel de um governo. Atenta contra a liberdade de imprensa”, disse ele ao GLOBO depois do anúncio da expulsão de Rohter.
No dia 13 de maio de 2004, há 20 anos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), provocado por um pedido de habeas corpus apresentado pelo então senador Sérgio Cabral (PMDB-RJ), concedeu ao jornalista um salvo conduto para ficar no país. “Não se pode submeter a liberdade às razões de conveniência ou oportunidade da administração”, escreveu o ministro Francisco Martins, do STJ. Para o magistrado, o visto do repórter não poderia ter sido suspenso por ele exercer um direito constitucional.
De início, Lula dizia que só desistiria da expulsão após uma retratação do jornal americano, o que não ocorreu. O próprio Rohter enviou um ofício de quatro páginas ao Ministério da Justiça pedindo que o governo reconsiderasse sua decisão. Na solicitação, o repórter lamentou a controvérsia e disse que boa parte da polêmica foi gerada por erros de tradução de seu texto. Não havia um pedido explícito de desculpas, mas o Planalto entendeu como um recuo e, por sua vez, também desistiu da expulsão.
“O jornalista fez uma retratação explicando a ausência de dolo, que é a figura fundamental do direito penal. Ele disse que não teve a intenção de atingir”, observou o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. “Examinei o documento e disse ao presidente que juridicamente era uma retratação consistente. O presidente resolveu, então, dar o caso por encerrado”.
Fonte: O Globo